A influência musical na cultura do estupro

Duas semanas após o ocorrido, o caso de estupro coletivo no Rio de Janeiro ainda tem rendido inúmeras discussões.

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Mesmo com todas as provas concretas de que a garota foi covardemente violentada por mais de trinta homens, há quem justifique a ação dos boçais afirmando que a adolescente simplesmente procurou a situação. Não entrarei no mérito da questão para não soar repetitivo, já que a dona desse espaço, a minha amiga Jayane Condulo, escreveu uma crônica brilhante acerca do tema na semana passada e eu comungo com cada palavra lá transcrita por ela. Mas, venho fomentar uma outra discussão que nasceu nas redes sociais após toda proliferação do caso e que merece uma grande reflexão.

Foi tendenciosamente registrado em algumas reportagens sobre o caso que a jovem violentada morava em um apartamento na região de classe média no Rio de Janeiro, mas que frequentava aos bailes funks na favela carioca. Bastou esse “alerta” da mídia para as redes sociais serem tomadas de assalto com diversas postagens, fotos e memes alertando os riscos e danos morais/sociais causados pelo Funk.

Postagens citando letras de diversos artistas conhecidos no cenário do Funk, como Mc 2K, Mc Jhey, Mc Max, Mc Pikachu, Mc Bin Laden, transpareciam a depravação sexual e a depreciação da mulher, retratada como um mero objeto sexual. Em respeito à linha editorial desse espaço, não reproduzirei as letras das canções aqui, mas com certeza você já deve ter ouvido cada uma delas e compreende muito bem do que se trata.

Porém, em algumas postagens, mesmo com o tom de denúncia e repúdio, era possível constatar tamanho preconceito generalizado e falta de informação, e isso cabe uma grande discussão.

Me recordo de uma postagem que dizia: “O Funk influencia diretamente o estupro”, mas aí eu lhe pergunto: será?

Pensando dessa forma, a gente caminha no senso comum de que uma música influencia um crime bárbaro como o estupro, forçando, de certa maneira, o discurso de que a forma da mulher se vestir é a principal causa do estupro, que uma mulher andando sozinha na rua a noite está pedindo para ser estuprada e vários outros clichês que a sociedade sustenta afim de recair toda a culpa sob a vítima. Portanto, imputar um crime a um estilo musical é mais uma transferência de responsabilidade insana. O estupro acontece por outras razões e não por influência de algo, principalmente de manifestações culturais.

E em outras postagens, a galera que tem uma grande aversão ao estilo aproveitava a oportunidade para achincalhar o mesmo sem dó. Muitos ali talvez fossem mais um dos que achavam que a jovem era merecedora de tal covardia, mas estavam lá bradando gritos de contestação contra “Esse lixo musical e moral que é o Funk”.

E é nesse ponto que caímos na grande problematização da sociedade, o fato de generalizar as coisas, e generalização demais significa preguiça e desinformação.

A cantora baiana Pitty, no calor da emoção, fez uma postagem no seu twitter repudiando veemente o caso do estupro coletivo e colocou, de certa forma, a culpa em todos os homens, como se só o fato de nascer homem já lhe tornava um estuprador. Toda a ala masculina criticou a postagem da cantora que rapidamente excluiu a mesma. A própria classe masculina, que fez piadas durante anos em cima de discursos machistas e misóginos como “O lugar de toda mulher é na cozinha”, “Que mulher no volante é perigo constante”, “Que toda loira é burra”, provou do gosto amargo da generalização na postagem da Pitty. E agora a sociedade comete o mesmo erro ao generalizar o estilo musical Funk dizendo que o mesmo é uma grande depreciação moral. Mas, se a gente for analisar a fundo a história da música, de forma mundial, muitas outras canções de diversos gêneros também retratam o machismo e a depreciação da mulher de forma clara e concisa.

Quem nunca cantarolou aquele famoso sambinha:

“Amélia não tinha a maior vaidade
Amélia que era a mulher de verdade”

Quer letra mais machista do que essa? Afinal de contas, a canção composta em 1941 pela dupla Mário Lago e Ataulfo Alves, empunhava um modelo ideal de mulher a ser seguido, sem vaidade, submissa, que ficava em casa cuidando do lar e vivendo em função do seu amado esposo. E é um samba, não um Funk.

Quantas e quantas vezes o Rock n’ Roll também não fomentou a cultura do estupro, o feminicídio e até mesmo a pedofilia em suas letras? Um dos sucessos do Guns N’ Roses, trazia logo estampado no seu refrão uma frase que remete claramente ao feminicídio:

I used to love her / But I had to kill her

Eu costumava amá-la / Mas tive que matá-la

E se você ficou chocado com trinta brutamontes violentando uma jovem de 16 anos, saiba que a banda Kiss já escreveu uma famosa música na qual o personagem oculto da canção alimentava desejos por uma garota de… 16 anos! É Christine Sixteen:

I don’t usually say things like this to girls your age
but when I saw you coming out of the school that day
that day I knew, I knew, I’ve got to have you, I’ve got to have you.

She’s’ been around, but she’s young and clean
I’ve got to have her, can’t live without her, whoo no
Christine sixteen, Christine sixteen

Geralmente não falo coisas assim para garotas da sua idade
mas quando a vi na saída da escola naquele dia
naquele dia eu sabia, eu sabia, eu tinha que te possuir eu tinha que te possuir

Ela está por aí, mas ela é jovem e pura
Tenho de possuí-la, não posso viver sem ela
Christine dezesseis, Christine dezesseis

E tem vários outros gêneros musicais que reproduzem o machismo e a violência contra a mulher, não só o Funk.

Se você chegou até aqui, deve estar afirmando agora: “Esse cara é Funkeiro, no mínimo, pra defender tanto assim…” Pois é ai que você se engana! Pelo contrário, Funk é um dos gêneros musicais que eu menos gosto. Como músico, acho tecnicamente o Funk sem essência nenhuma e muito ralo em termos de sonoridade e arranjo. Mas, mesmo não gostando de Funk, eu não posso reforçar o coro de “todo Funk induz o homem a estuprar”.

“Quer dizer então que eu quero defender as letras do Funk?”, Não! De forma alguma, acho pertinente e de suma importância esse debate e identificação da cultura machista na música e posteriormente a denúncia. As letras são sim de tamanho machismo e têm as mulheres como um mero objeto sexual pronta para saciar o prazer do macho alfa. Letras assim devem ser banidas da sociedade. Mas, o meu discurso é contra a generalização, pois o mesmo Funk que já cantou que “Que avistou a novinha no grau”, também reproduziu essa letra marcante de tamanho cunho social:

Eu só quero é ser feliz
Andar tranquilamente na favela onde eu nasci
E poder me orgulhar
E ter a consciência que o pobre tem seu lugar

O Funk hoje goza de um privilégio que talvez só o sertanejo universitário tem no momento: o grande alcance midiático. Ele está constantemente nas paradas de sucesso, tem espaço na TV aberta e fala diretamente com a massa, que é o grande consumidor desse produto. Então, a minha indignação com esses Mc’s que cantam essas letras chulas e que reduzem a zero a moral feminina, por que não usar essa grande ferramenta do sistema para discursar contra a misoginia? Por que não fazer uma música que realça o empoderamento feminino? Um famoso programa global recebeu o Mc João que cantou o seu sucesso “Baile de Favela”, que contém um trecho altamente machista e que escancara a cultura de estupro, por que não fazer o inverso e usar essa grande maquina televisiva em apoio as mulheres que tanto sofrem de repressão? Afinal, tudo que elas menos precisam era de uma canção sendo executada em rede nacional que escancara o seu maior temor.

 Vinícius Vieira.


Vinícius Vieira é estudante de jornalismo na FACCAMP, editor do blog musical Fila Benário Music desde 2009, colunista mensal no blog Futebol-Arte e repórter do O Jornaleiro.

1 comentário

  1. Esse Vinícius é o cara, viu? hahaha
    Adorei o texto, apesar de viver cantando “Christine, sixteen”.
    A cultura do estupro está em todas as partes, mesmo tendo gente que fala que “magina, isso é invenção de feminista”. Que ótimo que estamos falando sobre o assunto!

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