Autor: Jayane Condulo

Jayane Condulo, 21 anos, paulistana, cristã e estudante de Jornalismo. Poetisa desde os 7 anos de idade, sempre foi amante das palavras e inimiga das rotinas. Afinal, como qualquer outro poeta, sempre apreciou a liberdade e vive em busca da mesma, ao passo que rotinas nos aprisionam. Apaixonada pela Lua, atraída pelo som de qualquer violão e inconformada com a despoesia da vida, a jovem escritora expõe aqui suas revoltas, crises e amores de uma maneira peculiar.

Caminho de pobre

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Caminho de pobre é algo engraçado. Geralmente, ele mora no extremo da cidade (extremo mesmo, beirando a divisa com o interior), e todo mundo sabe que nos extremos não tem emprego. Emprego de bairros extremos só se for cabeleireiro ou dono de bar. Mas emprego mesmo, no geral, não tem.

Como não tem emprego no extremo, o pobre vai trabalhar em outro lugar. Ele atravessa a cidade e, por causa disso, às vezes passa mais tempo no trajeto do que na empresa. Afinal, quem mora no extremo nunca usa um transporte só. Tem que pegar ônibus, trem, outro ônibus e às vezes ainda anda um pedacinho a pé.

Nesse percurso todo, o caminho torna-se engraçado. Porque o pobre sai la do seu extremo, com calçadas tortas e asfalto emburacado, e se transporta entre as várias classes da cidade. Ele conhece desde a van sem lugares suficientes quanto o ônibus com ar condicionado e tomada pra carregar celular. Sai das ruas cinzas, com residências mal acabadas no reboco, e passeia pelas vias lindamente arborizadas. Enxerga desde uniformes sujos do trabalho do dia anterior até empresários engravatados, com camisas impecavelmente passadas. E faz baldeações que transitam entre estações cuidadosamente privatizadas e estações descuidadosamente públicas.

Caminho de pobre é engraçado, pois pode brincar de ser gente grande no meio dos ricos (para quem ele trabalha) e depois, no fim do dia, volta para seu extremo inacabado.

— Jayane Condulo

Os gordos, os magros, e os limites da piada com o alheio

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Nós temos um problema: somos engraçados demais. “Demais” mesmo, no sentido literal da palavra, que significa de ‘modo excessivo ou em exagero’. Vou além do dicionário e afirmo que “demais”, nesse caso, poderia ter “desnecessário” como sinônimo.

De onde foi que tiramos que é liberado fazer piada com tudo e, pior, com todos? Com loira, nordestino, português, negro. Mas com esses todo mundo sabe que é preconceito. Com gordos também, aliás. Mas, e quando a piada é com gente magra?

A humanidade caiu na ilustre besteira de padronizar um “corpo ideal”. O cara da barriga sarada e abdômen definido e a mulher magra, porém bunduda e peituda, são nossos exemplos e meta de vida. Que absurdo! E se eu tiver problemas de saúde, como a obesidade ou anorexia, que nem sempre são por descuido da pessoa? E se eu não tiver tempo pra fazer academia pra deixar meu corpo todo durinho? E se eu não tiver dinheiro pra fazer uma plástica, reduzir o estômago ou encher mais o bumbum?

Não interessa. Se a gente não se adequar ao padrão perfeito, seremos motivo de piada.

Outro dia vi alguém ‘zoando’ outra pessoa por ser magra demais, a ponto de não poder doar sangue pela falta de peso. Porém, o que o piadista não imaginava é que o motivo da graça para ele era sinônimo de desgosto e tristeza para o personagem ofendido.

A gente nunca sabe o que machuca uma pessoa, mas faz piada mesmo assim. Mais uma vez: que absurdo!

Acredito, sim, num padrão de corpo ideal: aquele em que a pessoa se sinta bem. Não interessa se é magra demais, gorda demais, com estrias demais ou sem curva nenhuma. O padrão de corpo ideal é a aceitação, consigo mesmo e com o alheio. E não há graça nenhuma nisso. A piada da vez é ser feliz como está.

— Jayane Condulo

​ Quantas “São Paulo” existem?

reg. 044 Centro de São Paulo multidão. 23/02/2016 Foto: Marcos

Era quase nove da noite e ela estava em Pinheiros, zona oeste da capital. Ao seu lado, a colega perguntava sobre o caminho que faria de volta pra casa.

— Preciso chegar até a Barra Funda de algum jeito, pegar o metrô até Itaquera e depois um ônibus que me deixa perto de casa.

Ela resumiu, sabendo que a outra não entenderia os detalhes, tal como ninguém entende. Os detalhes, no caso, é que onde estavam naquele momento era bastante contramão, e para chegar até a Barra Funda primeiro precisaria parar na Lapa pra pegar um outro ônibus. Além disso, depois de atravessar de ponta a ponta a linha vermelha do metrô, teria que ficar mais ou menos meia hora no terminal, esperando por outro ônibus em que pudesse ir sentada, já que desenvolveu síndrome do pânico e passa mal toda vez que vai os mais de quarenta minutos de viagem em pé.

Mesmo sem os detalhes, a colega comentou, quase sem acreditar que aquele caminho todo fosse possível:

— E lá por acaso passa bilhete único normal? Precisa do intermunicipal né?

Não, não precisa. Ainda é São Paulo, apesar de ser extremo do extremo leste. E caso precisasse, qual seria o problema nisso? O importante é chegar.

Quem mora nas pontas da cidade, às margens, conhece praticamente São Paulo inteiro, porque é obrigado a se locomover. Quase não há emprego nas zonas extremas e, apesar de ter diversas possibilidades de transporte, é preciso fazer muitas baldeações e geralmente utilizar dois ou três tipos de modais (ônibus, trens, metrôs). Mas chega.

Já quem mora um pouco mais próximo ao centro, geralmente conhece apenas uma São Paulo: aquela em que vive. Tem emprego, estudo e lazer sempre muito próximo, o mais longe dura meia hora de distância. Alguns acabam nem conhecendo todas as opções de transporte que a metrópole oferece, pois não têm necessidade. Outros, conhecem muito mais: já visitaram os principais pontos turísticos da cidade, pois como não perde tanto tempo de locomoção, têm disponibilidade de desfrutar de outras coisas.

Ela não. Com menos de um metro e meio de altura, gasta aproximadamente duas horas para ir e mais duas para voltar do trabalho. Isso sem contar a faculdade, que a faz chegar por volta de meia noite e meia em casa. Atravessa a cidade, literalmente, todos os dias. Nunca se perdeu; São Paulo lhe ensinou os “macetes”. E, apesar de ninguém acreditar que existe São Paulo após a linha vermelha, ela está lá. Como a maioria das pessoas da cidade.

— Jayane Condulo

Os pecados em minha testa

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Ontem eu pequei.
Dormi com um homem que não era meu.

Ontem eu tinha um nome.
Até descobrirem quem sou.

Já não sou quem antes era,
Sou o que eu fiz.

Antes Maria,
Hoje prostituta.

Disseram-me que meu pecado ficaria estampado em meu rosto pra sempre.
Um fardo a ser carregado, uma mácula marcada de sangue.
Meu pecado é minha identidade de hoje em diante.

Do meu rosto escorriam gotas dos riscos que formavam uma palavra em minha testa.
Do coração escorria a dor. Dos olhos, a tristeza da humilhação.

Corri, fugi, me entreguei.

Encontrei uma luz, era como um espelho refletindo o sol.
Cheguei perto e olhei pra mim, tentando ver as marcas deixadas pelas minhas escolhas.
Expostas, nuas, cruas, minhas.

Olhei e vi.
Um espelho, meu rosto, eu.
Não havia sangue, não havia nome, não havia pecado.

Quando a luz apagou eu percebi.
O espelho era um homem, era ele.
Marcado, sofrido, espancado.
Em sua pele escorria o sangue de palavras escritas por pontas afiadas, marcadas durante séculos.
Suas mãos furadas, assim como seus pés.

Sobre sua cabeça, uma placa.
Não seu nome, mas o que diziam sobre ele.
“Rei dos Judeus”

Em suas feridas, marcadas por homens cruéis, uma profecia:
“O castigo que nos trouxe paz estava sobre ele, e pelas suas feridas fomos curados”.

Então Ele me disse:
– Maria, deixei que escrevessem em mim a verdade sobre vocês. Cada corte, cada ferida. Eu me tornei como vocês, para que vocês pudessem se tornar como Eu. Pra que nunca mais fizessem com vocês, o que fizeram comigo. Decidi trazer no meu corpo as marcas das ações de vocês, pra que vocês sempre pudessem ter a chance de recomeçar sem elas.

Vem ver, não há marcas em você! Elas foram escritas em mim. Vai, pode recomeçar!

— Sarah Furtado

Cristãos x Cracolândia: onde a Igreja estava enquanto Dória atuava?

Por Jayane Condulo

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Era uma manhã de domingo quando o burburinho começou.  Antes mesmo do relógio pontuar 7h, o barulho de bombas acordava os moradores da região e surpreendia os desavisados no local.

Há quase três semanas, quase não se fala em outra coisa que não seja a ação policial  curta e grossa  na Cracolândia de São Paulo, sob o comando do atual prefeito João Dória. Desde então, as redes sociais dos brasileiros, como um todo, foram tomadas por postagens sobre o assunto, exibindo críticas das mais variadas e até mesmo contestáveis. Inclusive em perfis cristãos.

Enquanto vários religiosos alimentavam suas páginas no Facebook com opiniões aparentemente formadas e concretas, um grupo muito peculiar trabalhava arduamente para tentar sanar o problema da Cracolândia.

A Missão Batista Cristolândia atua há 8 anos na região resgatando pessoas em situação de rua e dependência química. Os atendidos recebem alimentação, corte de cabelo, banho e roupas. Aqueles que expressam o desejo de deixar o vício, passam por uma triagem social, jurídica e de saúde, e, de acordo com a disponibilidade de vagas, são encaminhados para os abrigos da organização.

O projeto hoje conta com 37 unidades em 8 estados do país, e possui atualmente mais de mil dependentes abrigados. Além disso, atendem diariamente cerca de 400 pessoas na Cracolândia com seus serviços. Na Cristolândias, os alunos estudam violão, tambor, tamborim, bumbo, pandeiro, triângulo, bateria, canto coral e teclado. Para que todos os trabalhos sejam oferecidos gratuitamente, o movimento conta com doações, ofertas e parcerias para o sustento dos missionários e profissionais que atuam no programa.

E não para por aí. Em maio de 2015 foi inaugurada a Cristolândia Criança, uma ação  que surgiu a partir de um ofício encaminhado aos batistas pela Vara de Infância e Juventude de Guarulhos, solicitando a implantação de uma unidade para reabilitação de crianças e adolescentes usuários de drogas no município. No programa, as crianças usuárias de drogas são encaminhadas para medida de acolhimento e também acompanhadas pelo Serviço de Convivência e Fortalecimento de Vínculos da instituição.

Além da Missão Batista Cristolândia, a reportagem Igrejas atuam onde Estado não pisa para atender usuários na Cracolândia, do jornal Folha de S. Paulo, relata ainda outros grupos cristãos, de católicos e protestantes, que operam de maneira determinada e bem planejada no resgate e cuidados a dependentes químicos.

Do outro lado, Dória atua ao mesmo tempo em que atropela todos os processos, sem saber bem o que fazer. A ação no local, inicialmente, seria do Governo do Estado, contando inclusive com a supervisão em tempo real de Geraldo Alckmin. O que ocorreu, porém, foi que o gestor da cidade roubou a cena visitando o local, divulgando um vídeo em seu Facebook e adotando um discurso mais ousado que do governador. Sem realizar quaisquer pesquisas prévias, planejamento e/ou estratégias futuras, o prefeito declarou: a Cracolândia acabou!

A ação foi feita sem que equipes municipais de assistência social e de saúde estivessem preparadas. Agora, João Dória negocia a saída de moradores de um albergue na Praça Princesa Isabel para que possa abrigar os dependentes químicos em situação de rua. Enquanto isso, cristãos continuam a agir de forma clara e eficaz na Cracolândia, dispostos a auxiliarem não apenas o Estado, mas o Reino.

​ Caos no Brasil

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Olhamos para Brasília e procuramos a quem culpar. Talvez não tenha sobrado um inocente. Corrupção, alianças erradas, suborno e tantas outras questões envolvendo políticos e grandes empresários invadiram quase todas as páginas dos jornais.

Caos no Brasil. Não pelo desastre político ou pela crise na economia, mas por nós: os brasileiros. Os chamados “cidadãos de bem”, que de bem mesmo passamos longe.

Nós, que passamos os últimos dias gastando todo nosso (pouco) vocabulário no Facebook, em posts revoltados e comentários cheios da razão. Nós, que priorizamos estar certos do que estar unidos, numa briga incessante de direita x esquerda sem enxergar que tudo é muito mais profundo do que isso. Nós, que não sabemos protestar nas urnas. Nós, que acatamos o que o Wilian Bonner fala e reproduzimos sem ao menos pesquisar ou ouvir de quaisquer outras fontes de informação.

Nós, que achamos uma carteira na rua, pegamos o dinheiro — seja ele pouco ou muito, o que vale é levar vantagem — e largamos apenas o objeto com os documentos, que poderiam ser devolvidos ao proprietário dos mesmos. Nós que furamos fila, pegamos troco a mais, passamos no sinal vermelho, mentimos para nossos filhos, gastamos mais do que podemos e gostamos de ver o outro se dar mal. Nós que somos hipócritas.

Caos no Brasil. Não pelo desastre político ou pela crise na economia, mas por nós: os brasileiros. Os chamados “cidadãos de bem”, que de bem mesmo passamos longe.

— Jayane Condulo.

Sobre mim

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Olá. Prazer. Eu não deveria estar me apresentando, já que você passa por mim todos os dias. Toda hora. 365 dias no ano, praticamente. Até quando tira férias, pois aí me usa para passear. Passear, pois é. Passo para cima, passo para baixo. Eu sou aquela que está em constante “sobe e desce”, mas você não me percebe. Aliás, nasci para te auxiliar. Mas você também não vê isso.

Às vezes você passa rápido. Resmungando. Batendo o pé. Correndo. Às vezes, chega até a brigar com quem nem conhece, achando que está te atrasando. Noutras vezes, o cansaço te abate e impede teus nervos de recusar a única coisa que posso te proporcionar: alguns segundos de descanso.

O paulistano insiste em deixar a esquerda livre, não sei bem o porquê. Já fui programada para estar em movimento, fui pensada para te aliviar. Mas o paulista insiste em deixar a esquerda livre. Não tem problema, assim pelo menos posso confortar os que realmente precisam de amparo, mesmo que seja por um período quase insignificante. São Paulo já é tão corrida por natureza, que vocês não me dão nem a chance de ajudar.

Até mesmo o “não-paulistano”, acolhido na cidade por seus empregos e sonhos, faz daqui sua morada. Adota a cultura da metrópole e anda apressado também sem me notar. Mesmo assim, eu o noto. Jovens, senhores, grávidas, nenéns. Negros, brancos, loiros, crespos, altos, baixos, gordos, magros, olhos puxados. Simpáticos, falantes, retraídos, irritados. Para mim, seres humanos, apenas. Para vocês, eu sou apenas uma máquina.

Prazer, sua escada rolante.

— Ana Osmak e Jayane Condulo

Eu não quero morar na periferia

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Minha mãe começava a guardar nossas coisas em caixas, fazia três meses que meu pai havia morrido. Ele era policial militar e, ao contrário do que muitos pensam, morreu de infarto e não em serviço. Agora que não temos mais ele, minha mãe disse que precisamos nos mudar, pois morar onde moramos ficou caro.

— Mãe, eu não quero morar na periferia.

— Por que não meu filho?

— Por que a polícia da periferia mata.

— Não diga bobagens menino, a mesma polícia de lá é a polícia daqui.

Minha mãe, que há 40 anos morava no Ipiranga, bairro nobre na zona sul de São Paulo, nunca parou pra pensar no que eu estava dizendo.

— Não mãe, a polícia daqui não é a mesma de lá. Aqui eles nos dão bom dia, sorriem pra todos e, quando algo acontece, eles averiguam com toda a educação.

— Igual à polícia de lá.

— Claro que não, mãe. Lá polícia não entra no bairro, ela invade como se estivesse entrando em uma zona de guerra. Como se todo mundo lá dentro fosse criminoso!

— De onde foi que você tirou isso? — minha mãe que antes arrumava as coisas agora me olhava atenta.

— De todo o lugar mãe! O papai sempre dizia isso, que quando era mandado pra fazer ronda no Morumbi, seus chefes diziam que ele deveria agir de um jeito totalmente diferente do jeito que agia quando estava na Cidade Tiradentes.

Como todo filho, eu sentia falta do meu pai. Ele era um bom homem, pelo menos eu acho que era. Nem todo policial é mau. Eu nunca vi meu pai em ação, mas acho que ele era diferente, não por ser meu pai, mas por tudo que ele me ensinou sobre moralidade e respeito.

— O Jardim Pantanal é um bairro bom — minha mãe voltou a prestar a atenção nas coisas que estava arrumando, não parecia estar muito interessada naquele assunto.

— Todo bairro é bom mãe, o problema é como o bairro é visto.

— E como ele é visto?

— Como a grande imprensa mostra mãe, que nas periferias só mora bandido, que são bairros perigosos, e nós acreditamos nisso, mas não é verdade. Eu conheço pessoas da periferia, são gente como a gente.

— Eu sei que são boas pessoas, por isso nós vamos nos mudar pra lá.

— A pessoas são, mas a policia não! — Eu já começava a me irritar, mas minha mãe parecia não entender meu ponto de vista — Se nos mudarmos pra lá, eu vou ser enquadrado.

— Não diga bobagens, você só tem 13 anos.

— Pois eu conheço meninos com 10 anos que já até apanharam da polícia.

— Por que alguma coisa fizeram. Se você não fizer nada, não tem porque se preocupar.

— Está vendo? É isso que eu quero dizer, olha o seu preconceito ai. Nem todo mundo que a polícia enquadra é culpado. Eu vou ser enquadrado de qualquer jeito.

– Por quê?

— PORQUE EU SOU NEGRO MÃE — agora não dava mais pra segurar, eu gritava e as lágrimas escorriam — Porque eu gosto de andar de chinelo e regata, de ficar até tarde na rua jogando bola, de ficar sentado na calçada jogando conversa fora e porque nós vamos morar na periferia e é assim que a polícia trata quem mora lá. Ela enquadra, ela bate, ela xinga e depois diz que nós que começamos.

— Aqui a polícia nunca te bateu.

— Porque eles me vêem na rua com você que é branca. Porque eles me vêem com os filhos dos vizinhos que só andam bem vestidos. Por que eles sabem que eu moro aqui e que meu pai era policial.

Agora, a ficha da minha mãe parecia cair. Durante um tempo ela ficou estática e não disse mais nada. Parou de arrumar as coisas e foi embora para o seu quarto fechando a porta.

Naquele dia ninguém tocou mais no assunto, nem no dia seguinte e nem na semana seguinte. Minha mãe fez o que muitas pessoas fazem, fechou os olhos para uma realidade pouco mostrada e se calou por não saber como agir ou por ter medo de agir.

— Rosângela Tomás.

Gay e cristão? Entenda o movimento Jesus Cura a Homofobia

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Por Jayane Condulo

Você já deve ter ouvido falar na Cura Gay, mas conhece a cura homofóbica? Um grupo de cristãos, em São Paulo, decidiu realizar um ato na Parada Gay de 2015, pedindo perdão pelos erros que as igrejas cometem contra homossexuais e transexuais.

A ação acabou se tornando em um movimento, chamado Jesus Cura a Homofobia, fundado pelo teólogo José Barbosa Junior (46), com o apoio de um amigo. Hoje, o movimento conta com cerca de 40 voluntários espalhados por 5 estados brasileiros, e o intuito é alcançar todo o país. A ideia é espalhar que é possível, sim, ser gay e cristão (ao mesmo tempo), excluindo a condenação comum em igrejas tradicionais.

Confira abaixo a entrevista exclusiva de José Barbosa para o Rotineiras, e entenda melhor o movimento, seus questionamentos e confrontos espirituais.

De onde veio a ideia de criar o movimento “Jesus Cura a Homofobia” e como você conseguiu mobilizar as pessoas?

A ideia surgiu de uma forma totalmente inesperada. Desde 2013, circula na internet uma foto da Parada Gay de Chicago [com um cristão abraçando um homossexual], e desde que eu vi aquela foto, mexeu muito comigo. Afinal, eu vi um caso de perto, de um rapaz homossexual em Teresópolis, que se converteu na minha igreja e tentou de várias formas se curar daquilo. Ele dava testemunhos até, mas todo mundo olhava e falava “é bicha, todo mundo tá vendo, não tem como”, e esse “bicha” não tem nenhum tom pejorativo, mas a gente olhava e dizia “não dá”. Ele ficou na igreja o tempo todo sofrendo bullying, até que não aguentou mais e saiu, injetou silicone no corpo todo e hoje é uma trans. E eu fiquei pensando: “no que a gente errou?”. Quando eu vi a foto, aquilo ficou dentro do meu coração por muito tempo. Aí eu estava em São Paulo, em 2015, e ia ter a Parada Gay, e uns dias antes da Parada eu vi essa foto de novo. Falei: “vou fazer isso”. Só que, detalhe: eu decidi fazer isso na terça-feira antes da Parada, que seria no domingo. Aí chamei um amigo meu, o Silas Fiorotti, na quarta-feira a noite, na Livraria Cultura da Av. Paulista. Falei pra ele: “Silas, vamos fazer isso?”. Ele faz parte do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária, e topou. Aí ele perguntou o que a gente iria usar, qual seria nosso lema, e por mim o nosso tema poderia ser o mesmo de Boston, pedindo perdão. Ele falou “não cara, aí vamos imitar demais, vamos pensar numa coisa nossa”. Na hora, me veio a frase “Jesus Cura a Homofobia”. O olho dele arregalou e ele disse “é isso!”. Aí pronto. Mas e aí, quem vai? Saímos de lá já decididos do nome e tal, cheguei em casa às 23h e publiquei a ideia, que eu e um amigo faríamos um ato na Paulista no domingo etc. Aí começou. Nisso, um amigo virtual meu fez a arte do Jesus Cura a Homofobia. E eu falei “como assim?” (risos). Um outro amigo falou pra criar um evento no Facebook, aí eu peguei a arte, usei como fundo, criei o evento e comecei a divulgar. Aí começou: 10, 20, 30, 40, 50… 400 pessoas. Falei “cara, se for todo mundo, vai dar um rolo danado”. Mas muita gente estava ali como um apoio, gente do Brasil inteiro falando que iria. Até então, eu já achava aquela coisa toda enorme. Na quinta-feira, meio dia, me liga uma menina da Folha de S. Paulo, querendo saber sobre o ato, e eu já espantado com aquilo! Ela fez a entrevista comigo pelo próprio Facebook, depois ela me ligou e passou quase 40 minutos falando comigo, querendo conhecer mais o contexto. E aí foi uma coisa curiosa, porque eu lembro que eu estava num evento na Ibab [Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo], e ela me ligou, conversamos bastante, depois de 5 minutos ela me ligou de novo, e falou “José, eu tô vendo aqui no Facebook que você é casado com a fulana, é verdade?”. Na época, eu ainda estava casado, aí falei que sim, e ela “mas então, você é hétero?!” (risos) E aí foi interessante, porque ela quis saber o por que eu estava fazendo aquilo. Foi a minha chance pra dizer que a minha percepção do evangelho é essa, e ela achou isso lindo e fez questão de frisar na reportagem, que é a coisa de você levantar pra lutar por algo que não é a sua realidade. A reportagem saiu no sábado de manhã na Folha, e aí o evento de 400 pessoas pulou para 5 mil. Eu falei “cara, é outra Parada no meio da Parada”, desesperado. Bom, ali eu senti que o negócio se transformou numa coisa bem maior do que a gente imaginava. Eu só ia fazer um ato na Av. Paulista, não tinha ideia de criar um movimento, era só um ato. Mas nós, como crentes, acreditamos que há um movimento do Espírito Santo que faz as coisas acontecerem, e aconteceu. Na Parada, só apareceram 25 pessoas, ainda bem, mas a repercussão disso foi a absurda, eu não tinha noção de onde aquilo ia parar. Desde o dia 14 de junho de 2015, a minha vida mudou. Só naquela semana, eu tive uma média de 800 mensagens no Facebook, algumas que não respondi até hoje, pois não consegui dar conta! Gente do Brasil inteiro contando histórias muito parecidas: gays, de igreja, expulsos de casa ou que não foram expulsos porque não assumiram ainda. Aí você vê que a realidade pede um movimento.

E como foi a experiência na Parada Gay?

Foi mais maravilhoso do que a gente imaginava! Era engraçado porque a faixa ficou bem curiosa. O “Jesus Cura” era grande e “a Homofobia” menor, então tinha gente que olhava o cartaz e já vinha pra brigar com a gente, achando que era a “Cura Gay”. Só que, quando olhavam os outros cartazes que o pessoal estava carregando, bom… a gente perdeu a conta de abraços, choros e de tudo o que a gente viveu naquele dia. Quando passou o último trio elétrico, era uma drag queen que estava falando, e quando ela passou por nós pediu para o caminhão parar e leu todos os cartazes, todos. E ela falou “esse é o tipo de igreja que a gente sonha no nosso país”. Aquilo, pra mim, valeu tudo. Não tem preço sabe, não dá pra mensurar, e eu vi que Deus estava naquilo. Foi uma experiência de abraços, gente chorando, e quando eu cheguei em casa já tinham mais de mil solicitações de amizade. Um negócio doido!

Como os familiares reagiram à ideia do movimento?

Foi tranquilo, porque a minha família me conhece! (risos). Mas a mãe da minha filha insinuou coisas sobre mim, mas ela fez isso mais por uma acusação de peso espiritual, ela e o pastor dela, aliás. Porque, o que aconteceu foi que a minha filha começou a concordar com as minhas ideias, e ela tinha 15 anos na época. Então, para dissuadir minha filha dessas ideias, disseram isso. Foi um absurdo. Para a mãe dela, eu estou pervertendo a fé da minha filha!

Você lavou os pés da transexual Viviane Beleboni (que desfilou crucificada na Parada Gay de 2015). Como foi essa experiência?

Foi o seguinte, quando eu vi a cena da Viviane, entendi a mensagem na hora. Eu não vi sacrilégio nenhum naquilo, vi exatamente o que ela queria passar: “nós, transexuais, somos crucificadas”. E, quando você conhece a realidade transexual, você se assusta. Por exemplo, a expectativa de vida de uma trans no Brasil é de 35 anos, metade de uma pessoa “comum”. Isso não é normal, não pode ser normal. Imagina chegar aos 30 anos e pensar “eu vou morrer a qualquer momento”, seja assassinado, de doença, etc. A sociedade vai excluindo e depois culpa a pessoa, principalmente no caso de trans, pois já começam a aflorar a transexualidade desde pequenos. Muitos são rejeitados pela família; na igreja então, nem se fala; deixam de ir para a escola. Então, não têm formação, não têm família, não têm nada e precisam se manter na vida, aí vão para a prostituição. Aí são pobres, mas têm que injetar silicone no corpo de qualquer jeito, literalmente, e isso traz problemas sérios para a saúde. Além disso, tem a questão da violência, então a  expectativa de vida é horrível. Mas, voltando à Viviane, duas semanas depois da Parada, o pessoal resolveu fazer um ato inter-religioso de desagravo. Engraçado, ela saiu crucificada na Parada, mas foi realmente crucificada depois, por todo mundo. Então, resolvemos fazer esse ato lá no Largo do Arouche, tinha um padre, um representante judeu, um muçulmano, várias entidades religiosas. Como no cristianismo temos o “lavar dos pés”, eu tive a ideia de fazer isso como um símbolo de perdão e de total serviço, pois a ideia é essa que estamos aqui para servir. Então, levei a bacia, chamei o padre e ele topou. Não tinha ninguém lá de imprensa, mas todo mundo fotografou pois foi um momento marcante daquele dia, e depois isso ganhou a rede, de uma forma que chegou a ser publicado até em um jornal da Alemanha. Então, o negócio correu o mundo. E essa era a percepção que a gente tinha: “perdoe-nos, estamos aqui para te servir”. Foi uma experiência muito marcante, a Viviane chorou muito, a gente chorou muito.

O movimento tem algum tipo de ação social para homossexuais?

Isso é o que a gente ainda está bolando. Primeiro, queremos montar uma rede de pastores, padres, líderes religiosos que trabalhem nessa perspectiva. Porque eu recebo muito email de outros estados, e aí eu tenho que tentar, por telefone, conversar com a pessoa, com a família da pessoa e tentar fazer a mediação. A ideia é ter alguém em diferentes regiões para fazer isso, visitar a família, conversar, aconselhar. Uma outra ideia é uma ação que estamos tentando estruturar há um ano, mas precisamos de igrejas que topem fazer. É uma ação em conjunto com a ONG Mães pela Diversidade, levando palestras nas igrejas, divididas em três tempos: a Bíblia e a homossexualidade; mãe e a descoberta da homossexualidade do filho; e a experiência do próprio filho. Acho que essa tríade de palestras pode mudar muita coisa nas igrejas, pois tem identificação. Uma mãe falando em uma igreja tem autoridade maior que o pastor, porque a mãe que ouvir vai se identificar, é a empatia. Então, se a gente conseguir entrar nas igrejas com esse tipo de ação, creio que pode ter uma repercussão muito grande. Quando um gay procura a gente pedindo recomendação de igreja, é um caso sério. Tem as igrejas inclusivas, mas elas têm problemas ainda mais sérios, pois vai o aceitar como gay mas vai continuar com regras de uma igreja normal, e condenando os outros, que é o pior! Hoje, das igrejas inclusivas, a única que recomendo de olhos fechados é a ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), porque ela trabalha numa perspectiva de direitos humanos, então é libertária em todos os sentidos, não só sobre orientação sexual. É realmente uma teologia abrangente, e isso pra mim é fundamental. Mas, às vezes, o cara não quer, ele quer ir para uma igreja tradicional, e aí eu explico como vai ser. Enfim, ainda precisa de muitos ajustes para o que a gente quer fazer. Teve gente do Brasil inteiro querendo replicar a ideia, e aí começou um outro problema. A Lagoinha [igreja batista em Belo Horizonte, conhecida pelo seu ministério de louvor Diante do Trono], por exemplo, usou o termo Jesus Cura a Homofobia no ano seguinte em um evento deles. Só que não foi no mesmo sentido que a gente. Lá é “Jesus cura a homofobia”, mas o gay tem que deixar de ser gay. Então, eu reuni todo mundo que participou na Parada e disse qual era minha linha de raciocínio, e todo mundo concordou. Então formamos um documento base (ainda estamos construindo mas já tem algumas coisas), para passar pra todo mundo que queira fazer também, em qualquer parte do país. Ninguém vai usar Jesus Cura a Homofobia para falar outra coisa, algo que a gente não fala. A gente não fala que o gay tem que se transformar, a gente fala que ele vai continuar gay. Gay e cristão. Muita gente pensou que era só uma isca, do tipo fingir que aceita para trazer a pessoa, como a maioria das igrejas fazem. Mas não, é realmente abraçar a ideia de que se é aquilo. Eu comecei a conhecer de dentro, as histórias que eu ouvi, as pessoas que eu ouvi, me fizeram rever coisas que eu não tinha pensado a minha vida inteira. Depois que se ouve essas pessoas, não dá para continuar sendo o mesmo. Ouvir alguém falar “eu sempre gostei de meninos, e sempre amei Jesus”, como dizer para essa pessoa que não? Como dizer que ela não ama Jesus, porque se amasse gostaria de mulher? Não é assim.

Mas, a Bíblia não condena as práticas homossexuais?

Não. Estou escrevendo um livro que é justamente sobre isso, onde faço uma releitura de todos os textos que, a princípio, condenam. Primeiro, a gente tem que definir o que é a homossexualidade. Uma coisa é o ato sexual, como era praticado no Antigo Testamento, como domínio, manifestação de poder. Quando uma cidade conquistava a outra, a primeira coisa que faziam era estuprar as mulheres, porque o sexo era a forma de mostrar domínio. Em alguns casos, eles estupravam os homens também, exatamente para subjugar. Então, a condenação no Antigo Testamento é sócio-política. “Homem não deve se deitar com homem”, porque homem foi feito para dominar, e a mulher que era dominada, não o homem. O que está por trás é esse pensamento. O relacionamento afetivo é uma questão moderna, até para os heterossexuais. Casar por amor, por exemplo, é algo do nosso tempo, é recente. Por isso eu digo que a igreja tem que estar se reinventando sempre, pois quando se fala de homossexualidade hoje, se fala em afeto. E tem gente que não consegue sentir afeto por outro sexo. Então, pegar isso no Antigo Testamento e trazer para cá é um desastre, pois não é relação de afeto, é relação de poder. Quando vamos para o Novo Testamento, encontramos problemas mais sérios ainda. Tem um texto em Romanos, por exemplo, que é em um contexto de culto, e não de relacionamento. Em Roma, as orgias eram cultuais, e a condenação ali era para os cultos em que “ninguém é de ninguém”. As pessoas estão indo para a igreja e levando esses costumes, e era isso que estava sendo condenado. Por isso é necessário uma leitura da época, para não fazer uma leitura totalmente equivocada. Outra coisa: não havia homossexuais na época de Jesus? Claro que havia, sempre houve em todo a história. E o que Jesus fala sobre homossexualidade? Nada, absolutamente nada. Se fosse algo tão sério quanto a gente quer que seja, não acho que ele iria deixar passar em branco. Por exemplo, Jesus teve uma condenação muito mais clara ao divórcio e a gente não leva isso em conta, porque “os tempos mudaram”. E eu sou divorciado! Ninguém leva isso em conta. Nesse caso sim, tem que ver o contexto, a atualidade, etc, porque aí tem um interesse né.

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Pós 2016

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Acabou. O “pior ano” de quase todo mundo, acabou. Será? Pós 2016 e eu te pergunto: o que muda? Ou, seria mais correto questionar o que nós faremos para mudar tudo o que foi de ruim no ano mais detestado da história?

Pós 2016 e continuamos achando que a cultura do estupro não existe, que 30 homens não estavam errados. Pós 2016 e ainda estamos alienados em joguinhos do celular enquanto andamos na rua, ou em games que assassinam meninos na madrugada. Pós 2016 e continuamos comemorando o Brasil “para gringo ver”, como se não tivesse bulling e racismo dentro de casa.

Não, não mudamos. Vamos continuar cuidando da vida alheia assistindo BBB e pulando Carnaval, para depois falar mal de ambos. Vamos continuar protestando com a camisa da CBF que não é corrupta, acatando o discurso totalmente partidário da grande mídia. Continuamos sem saber explicar o que é a Lava a Jato e sem saber escrever (e nem pronunciar) a palavra impeachment. E, falando em impeachment, vamos continuar elegendo políticos que vimos votar  a favor do processo, mas não pelo contexto em sim, mas “por Deus, pelos pais, pelos filhos, pela tia Eurides e pela paz em Jerusalém (!)”.

Aliás, vamos continuar protestando contra a corrupção, mas furando a fila no mercado, sendo caloteiro, mentindo pra todo mundo, criticando a política do país sem lembrar em quem a gente votou.

E, depois de tudo isso, vamos continuar usando a frase “o Brasil não vai pra frente” pra maquiar nossa hipocrisia diária. Pós 2016 – o que muda pra você?

— Jayane Condulo.