Por Jayane Condulo
Você já deve ter ouvido falar na Cura Gay, mas conhece a cura homofóbica? Um grupo de cristãos, em São Paulo, decidiu realizar um ato na Parada Gay de 2015, pedindo perdão pelos erros que as igrejas cometem contra homossexuais e transexuais.
A ação acabou se tornando em um movimento, chamado Jesus Cura a Homofobia, fundado pelo teólogo José Barbosa Junior (46), com o apoio de um amigo. Hoje, o movimento conta com cerca de 40 voluntários espalhados por 5 estados brasileiros, e o intuito é alcançar todo o país. A ideia é espalhar que é possível, sim, ser gay e cristão (ao mesmo tempo), excluindo a condenação comum em igrejas tradicionais.
Confira abaixo a entrevista exclusiva de José Barbosa para o Rotineiras, e entenda melhor o movimento, seus questionamentos e confrontos espirituais.
De onde veio a ideia de criar o movimento “Jesus Cura a Homofobia” e como você conseguiu mobilizar as pessoas?
A ideia surgiu de uma forma totalmente inesperada. Desde 2013, circula na internet uma foto da Parada Gay de Chicago [com um cristão abraçando um homossexual], e desde que eu vi aquela foto, mexeu muito comigo. Afinal, eu vi um caso de perto, de um rapaz homossexual em Teresópolis, que se converteu na minha igreja e tentou de várias formas se curar daquilo. Ele dava testemunhos até, mas todo mundo olhava e falava “é bicha, todo mundo tá vendo, não tem como”, e esse “bicha” não tem nenhum tom pejorativo, mas a gente olhava e dizia “não dá”. Ele ficou na igreja o tempo todo sofrendo bullying, até que não aguentou mais e saiu, injetou silicone no corpo todo e hoje é uma trans. E eu fiquei pensando: “no que a gente errou?”. Quando eu vi a foto, aquilo ficou dentro do meu coração por muito tempo. Aí eu estava em São Paulo, em 2015, e ia ter a Parada Gay, e uns dias antes da Parada eu vi essa foto de novo. Falei: “vou fazer isso”. Só que, detalhe: eu decidi fazer isso na terça-feira antes da Parada, que seria no domingo. Aí chamei um amigo meu, o Silas Fiorotti, na quarta-feira a noite, na Livraria Cultura da Av. Paulista. Falei pra ele: “Silas, vamos fazer isso?”. Ele faz parte do Coletivo por uma Espiritualidade Libertária, e topou. Aí ele perguntou o que a gente iria usar, qual seria nosso lema, e por mim o nosso tema poderia ser o mesmo de Boston, pedindo perdão. Ele falou “não cara, aí vamos imitar demais, vamos pensar numa coisa nossa”. Na hora, me veio a frase “Jesus Cura a Homofobia”. O olho dele arregalou e ele disse “é isso!”. Aí pronto. Mas e aí, quem vai? Saímos de lá já decididos do nome e tal, cheguei em casa às 23h e publiquei a ideia, que eu e um amigo faríamos um ato na Paulista no domingo etc. Aí começou. Nisso, um amigo virtual meu fez a arte do Jesus Cura a Homofobia. E eu falei “como assim?” (risos). Um outro amigo falou pra criar um evento no Facebook, aí eu peguei a arte, usei como fundo, criei o evento e comecei a divulgar. Aí começou: 10, 20, 30, 40, 50… 400 pessoas. Falei “cara, se for todo mundo, vai dar um rolo danado”. Mas muita gente estava ali como um apoio, gente do Brasil inteiro falando que iria. Até então, eu já achava aquela coisa toda enorme. Na quinta-feira, meio dia, me liga uma menina da Folha de S. Paulo, querendo saber sobre o ato, e eu já espantado com aquilo! Ela fez a entrevista comigo pelo próprio Facebook, depois ela me ligou e passou quase 40 minutos falando comigo, querendo conhecer mais o contexto. E aí foi uma coisa curiosa, porque eu lembro que eu estava num evento na Ibab [Igreja Batista da Água Branca, em São Paulo], e ela me ligou, conversamos bastante, depois de 5 minutos ela me ligou de novo, e falou “José, eu tô vendo aqui no Facebook que você é casado com a fulana, é verdade?”. Na época, eu ainda estava casado, aí falei que sim, e ela “mas então, você é hétero?!” (risos) E aí foi interessante, porque ela quis saber o por que eu estava fazendo aquilo. Foi a minha chance pra dizer que a minha percepção do evangelho é essa, e ela achou isso lindo e fez questão de frisar na reportagem, que é a coisa de você levantar pra lutar por algo que não é a sua realidade. A reportagem saiu no sábado de manhã na Folha, e aí o evento de 400 pessoas pulou para 5 mil. Eu falei “cara, é outra Parada no meio da Parada”, desesperado. Bom, ali eu senti que o negócio se transformou numa coisa bem maior do que a gente imaginava. Eu só ia fazer um ato na Av. Paulista, não tinha ideia de criar um movimento, era só um ato. Mas nós, como crentes, acreditamos que há um movimento do Espírito Santo que faz as coisas acontecerem, e aconteceu. Na Parada, só apareceram 25 pessoas, ainda bem, mas a repercussão disso foi a absurda, eu não tinha noção de onde aquilo ia parar. Desde o dia 14 de junho de 2015, a minha vida mudou. Só naquela semana, eu tive uma média de 800 mensagens no Facebook, algumas que não respondi até hoje, pois não consegui dar conta! Gente do Brasil inteiro contando histórias muito parecidas: gays, de igreja, expulsos de casa ou que não foram expulsos porque não assumiram ainda. Aí você vê que a realidade pede um movimento.
E como foi a experiência na Parada Gay?
Foi mais maravilhoso do que a gente imaginava! Era engraçado porque a faixa ficou bem curiosa. O “Jesus Cura” era grande e “a Homofobia” menor, então tinha gente que olhava o cartaz e já vinha pra brigar com a gente, achando que era a “Cura Gay”. Só que, quando olhavam os outros cartazes que o pessoal estava carregando, bom… a gente perdeu a conta de abraços, choros e de tudo o que a gente viveu naquele dia. Quando passou o último trio elétrico, era uma drag queen que estava falando, e quando ela passou por nós pediu para o caminhão parar e leu todos os cartazes, todos. E ela falou “esse é o tipo de igreja que a gente sonha no nosso país”. Aquilo, pra mim, valeu tudo. Não tem preço sabe, não dá pra mensurar, e eu vi que Deus estava naquilo. Foi uma experiência de abraços, gente chorando, e quando eu cheguei em casa já tinham mais de mil solicitações de amizade. Um negócio doido!
Como os familiares reagiram à ideia do movimento?
Foi tranquilo, porque a minha família me conhece! (risos). Mas a mãe da minha filha insinuou coisas sobre mim, mas ela fez isso mais por uma acusação de peso espiritual, ela e o pastor dela, aliás. Porque, o que aconteceu foi que a minha filha começou a concordar com as minhas ideias, e ela tinha 15 anos na época. Então, para dissuadir minha filha dessas ideias, disseram isso. Foi um absurdo. Para a mãe dela, eu estou pervertendo a fé da minha filha!
Você lavou os pés da transexual Viviane Beleboni (que desfilou crucificada na Parada Gay de 2015). Como foi essa experiência?
Foi o seguinte, quando eu vi a cena da Viviane, entendi a mensagem na hora. Eu não vi sacrilégio nenhum naquilo, vi exatamente o que ela queria passar: “nós, transexuais, somos crucificadas”. E, quando você conhece a realidade transexual, você se assusta. Por exemplo, a expectativa de vida de uma trans no Brasil é de 35 anos, metade de uma pessoa “comum”. Isso não é normal, não pode ser normal. Imagina chegar aos 30 anos e pensar “eu vou morrer a qualquer momento”, seja assassinado, de doença, etc. A sociedade vai excluindo e depois culpa a pessoa, principalmente no caso de trans, pois já começam a aflorar a transexualidade desde pequenos. Muitos são rejeitados pela família; na igreja então, nem se fala; deixam de ir para a escola. Então, não têm formação, não têm família, não têm nada e precisam se manter na vida, aí vão para a prostituição. Aí são pobres, mas têm que injetar silicone no corpo de qualquer jeito, literalmente, e isso traz problemas sérios para a saúde. Além disso, tem a questão da violência, então a expectativa de vida é horrível. Mas, voltando à Viviane, duas semanas depois da Parada, o pessoal resolveu fazer um ato inter-religioso de desagravo. Engraçado, ela saiu crucificada na Parada, mas foi realmente crucificada depois, por todo mundo. Então, resolvemos fazer esse ato lá no Largo do Arouche, tinha um padre, um representante judeu, um muçulmano, várias entidades religiosas. Como no cristianismo temos o “lavar dos pés”, eu tive a ideia de fazer isso como um símbolo de perdão e de total serviço, pois a ideia é essa que estamos aqui para servir. Então, levei a bacia, chamei o padre e ele topou. Não tinha ninguém lá de imprensa, mas todo mundo fotografou pois foi um momento marcante daquele dia, e depois isso ganhou a rede, de uma forma que chegou a ser publicado até em um jornal da Alemanha. Então, o negócio correu o mundo. E essa era a percepção que a gente tinha: “perdoe-nos, estamos aqui para te servir”. Foi uma experiência muito marcante, a Viviane chorou muito, a gente chorou muito.
O movimento tem algum tipo de ação social para homossexuais?
Isso é o que a gente ainda está bolando. Primeiro, queremos montar uma rede de pastores, padres, líderes religiosos que trabalhem nessa perspectiva. Porque eu recebo muito email de outros estados, e aí eu tenho que tentar, por telefone, conversar com a pessoa, com a família da pessoa e tentar fazer a mediação. A ideia é ter alguém em diferentes regiões para fazer isso, visitar a família, conversar, aconselhar. Uma outra ideia é uma ação que estamos tentando estruturar há um ano, mas precisamos de igrejas que topem fazer. É uma ação em conjunto com a ONG Mães pela Diversidade, levando palestras nas igrejas, divididas em três tempos: a Bíblia e a homossexualidade; mãe e a descoberta da homossexualidade do filho; e a experiência do próprio filho. Acho que essa tríade de palestras pode mudar muita coisa nas igrejas, pois tem identificação. Uma mãe falando em uma igreja tem autoridade maior que o pastor, porque a mãe que ouvir vai se identificar, é a empatia. Então, se a gente conseguir entrar nas igrejas com esse tipo de ação, creio que pode ter uma repercussão muito grande. Quando um gay procura a gente pedindo recomendação de igreja, é um caso sério. Tem as igrejas inclusivas, mas elas têm problemas ainda mais sérios, pois vai o aceitar como gay mas vai continuar com regras de uma igreja normal, e condenando os outros, que é o pior! Hoje, das igrejas inclusivas, a única que recomendo de olhos fechados é a ICM (Igreja da Comunidade Metropolitana), porque ela trabalha numa perspectiva de direitos humanos, então é libertária em todos os sentidos, não só sobre orientação sexual. É realmente uma teologia abrangente, e isso pra mim é fundamental. Mas, às vezes, o cara não quer, ele quer ir para uma igreja tradicional, e aí eu explico como vai ser. Enfim, ainda precisa de muitos ajustes para o que a gente quer fazer. Teve gente do Brasil inteiro querendo replicar a ideia, e aí começou um outro problema. A Lagoinha [igreja batista em Belo Horizonte, conhecida pelo seu ministério de louvor Diante do Trono], por exemplo, usou o termo Jesus Cura a Homofobia no ano seguinte em um evento deles. Só que não foi no mesmo sentido que a gente. Lá é “Jesus cura a homofobia”, mas o gay tem que deixar de ser gay. Então, eu reuni todo mundo que participou na Parada e disse qual era minha linha de raciocínio, e todo mundo concordou. Então formamos um documento base (ainda estamos construindo mas já tem algumas coisas), para passar pra todo mundo que queira fazer também, em qualquer parte do país. Ninguém vai usar Jesus Cura a Homofobia para falar outra coisa, algo que a gente não fala. A gente não fala que o gay tem que se transformar, a gente fala que ele vai continuar gay. Gay e cristão. Muita gente pensou que era só uma isca, do tipo fingir que aceita para trazer a pessoa, como a maioria das igrejas fazem. Mas não, é realmente abraçar a ideia de que se é aquilo. Eu comecei a conhecer de dentro, as histórias que eu ouvi, as pessoas que eu ouvi, me fizeram rever coisas que eu não tinha pensado a minha vida inteira. Depois que se ouve essas pessoas, não dá para continuar sendo o mesmo. Ouvir alguém falar “eu sempre gostei de meninos, e sempre amei Jesus”, como dizer para essa pessoa que não? Como dizer que ela não ama Jesus, porque se amasse gostaria de mulher? Não é assim.
Mas, a Bíblia não condena as práticas homossexuais?
Não. Estou escrevendo um livro que é justamente sobre isso, onde faço uma releitura de todos os textos que, a princípio, condenam. Primeiro, a gente tem que definir o que é a homossexualidade. Uma coisa é o ato sexual, como era praticado no Antigo Testamento, como domínio, manifestação de poder. Quando uma cidade conquistava a outra, a primeira coisa que faziam era estuprar as mulheres, porque o sexo era a forma de mostrar domínio. Em alguns casos, eles estupravam os homens também, exatamente para subjugar. Então, a condenação no Antigo Testamento é sócio-política. “Homem não deve se deitar com homem”, porque homem foi feito para dominar, e a mulher que era dominada, não o homem. O que está por trás é esse pensamento. O relacionamento afetivo é uma questão moderna, até para os heterossexuais. Casar por amor, por exemplo, é algo do nosso tempo, é recente. Por isso eu digo que a igreja tem que estar se reinventando sempre, pois quando se fala de homossexualidade hoje, se fala em afeto. E tem gente que não consegue sentir afeto por outro sexo. Então, pegar isso no Antigo Testamento e trazer para cá é um desastre, pois não é relação de afeto, é relação de poder. Quando vamos para o Novo Testamento, encontramos problemas mais sérios ainda. Tem um texto em Romanos, por exemplo, que é em um contexto de culto, e não de relacionamento. Em Roma, as orgias eram cultuais, e a condenação ali era para os cultos em que “ninguém é de ninguém”. As pessoas estão indo para a igreja e levando esses costumes, e era isso que estava sendo condenado. Por isso é necessário uma leitura da época, para não fazer uma leitura totalmente equivocada. Outra coisa: não havia homossexuais na época de Jesus? Claro que havia, sempre houve em todo a história. E o que Jesus fala sobre homossexualidade? Nada, absolutamente nada. Se fosse algo tão sério quanto a gente quer que seja, não acho que ele iria deixar passar em branco. Por exemplo, Jesus teve uma condenação muito mais clara ao divórcio e a gente não leva isso em conta, porque “os tempos mudaram”. E eu sou divorciado! Ninguém leva isso em conta. Nesse caso sim, tem que ver o contexto, a atualidade, etc, porque aí tem um interesse né.